O Filho de Mil Homens

Ivo Fernandes • 26 de novembro de 2025

um filme para quem nasceu da falta e aprendeu a se reinventar

Quando uma amiga me disse que o filme O Filho de Mil Homens a fazia lembrar de mim, não imaginei exatamente por quê. A primeira associação foi o título, natural, quase óbvia, sobretudo porque quem convive comigo sabe que a questão da origem, da filiação e da ausência funda quase tudo o que escrevo, ensino e vivo. Mas havia algo mais profundo ali. Quando decidi assistir à obra, em dois dias de respirações suspensas e silêncios que se tornaram necessários, percebi que o filme não apenas conversava comigo; ele parecia narrar partes minhas que eu ainda não tinha nomeado. Saí da experiência completamente encantado com a delicadeza da narrativa, com o cuidado estético da direção, com a interpretação contida e, por isso mesmo, devastadora dos personagens, e sobretudo com a coragem de tratar da família através das suas margens, não dos seus centros. Ainda não li o livro de Valter Hugo Mãe que inspira o filme, mas isso será inevitavelmente minha próxima travessia — até porque a obra chega justamente enquanto reescrevo um romance antigo, iniciado em 2007, quando minhas crises amorosas e minha crise de origem se misturavam como uma única pergunta. Continuei esse romance até 2012, quando — simbolicamente — morri e renasci. Desde então, me refiz inúmeras vezes, como se cada heterônimo que criei fosse uma das formas possíveis de renascer da mesma ausência.


O que encontrei no filme me toca no íntimo porque fala diretamente aos que carregam dores na gênese das suas histórias, aos filhos dos moralmente excluídos, aos que convivem com a sensação de terem sido lançados ao mundo sem um pertencimento inaugural. O sujeito é forjado numa cadeia de significantes e o filme nos mostra isso, ele retrata vidas nascidas do furo, não do berço; vidas tecidas na falta, não na promessa; vidas que não receberam de origem o acolhimento, mas que precisaram construir sua própria gramática de existir. E talvez por isso a obra pareça tocar tantas pessoas — porque ela revela algo que muitos escondem: ninguém nasce completo; a gente se fabrica a partir do que falta.


Há uma imagem constante no filme, o mar como lugar de nascimento, morte e recomeço, que imediatamente me levou à minha própria caverna simbólica. Não se trata da caverna platônica, mas de um lugar íntimo onde fui deixado só, apenas na presença bruta do mar. Ali, naquele desamparo inaugural, que não foi literal, mas sempre foi real, eu me fiz em muitos. Esses muitos habitam meus escritos até hoje: são meus heterônimos, minhas vozes poéticas, meus espelhos quebrados que escrevem. Freud diria que essa multiplicidade é uma defesa criativa diante da falta; Lacan, por sua vez, chamaria isso de uma cadeia significante que tenta reinventar um ponto de origem. O filme aciona exatamente esse lugar, o ponto onde o abandono deixa de ser ferida e se transforma em linguagem.


É nesse jogo de ausência e reinvenção que o filme se torna também uma meditação sobre as novas formas de família. Não as famílias moldadas pela norma, mas aquelas criadas pelo encontro, pelo desejo e pela possibilidade. Parentesco não é apenas biológico, mas também uma invenção social, e o filme demonstra com extrema delicadeza personagens que não cabem nos moldes do “normal”, mas que, por isso mesmo, criam novas maneiras de amar. O filme não milita; ele humaniza. Ele mostra que família é aquilo que nasce quando dois ou mais feridos decidem cuidar um do outro. E isso, de alguma forma, me atravessa profundamente, porque para muitos de nós, a casa não estava pronta quando chegamos. O acolhimento não veio no automático. O pertencimento foi trabalho, suor, esforço e, às vezes, pura teimosia do coração.


À medida que o filme avança, eu me via nas personagens: no menino que perdeu antes mesmo de ter; no homem que procurou uma família possível; na mulher rejeitada que precisou recomeçar; no ser que descobre que amar é sempre acolher o que é singular no outro, nunca o que é esperado. Talvez essa seja a linha secreta que une todos os que se emocionam com O Filho de Mil Homens: reconhecer que amar é sempre construir uma casa com as tábuas soltas da própria história.


Enquanto assistia, percebi também como a obra chega num momento simbólico para mim. E é curioso notar como tudo converge: o eu que caiu, o eu que desabou, o eu que renasceu, os eus que se multiplicaram em heterônimos, e esse eu atual, que tenta recolher suas próprias partes para escrever de um lugar mais inteiro. O filme, nesse sentido, funciona como um rito de passagem: uma espécie de revelação silenciosa que não aponta respostas, mas ilumina perguntas.


Ao final, percebi que O Filho de Mil Homens não é simplesmente um filme sobre paternidade, adoção ou abandono. É uma obra sobre reinvenção — sobre a coragem de assumir a própria falta e, ainda assim, seguir adiante, criando vínculos possíveis, gentilezas improváveis e famílias que nascem não do sangue, mas da escolha. É também uma meditação sobre o que significa ser filho. Não ser filho de um, mas de muitos. De mil histórias, mil afetos, mil versões de nós mesmos. E talvez seja exatamente isso que o filme insista em dizer: não é a origem que define quem somos, mas o modo como decidimos continuar.


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