🌹 Ana Magdalena e a Travessia do Desejo

Ivo Fernandes • 14 de novembro de 2025

Quando amar é voltar-se para si

Há livros que não contam uma história — eles escutam um percurso.


Em agosto nos veremos, de Gabriel García Márquez, é um desses livros. Não fala apenas de uma mulher e seus amantes, mas da lenta viagem de Ana Magdalena Bach em direção de si mesma. É uma narrativa de repetições, retornos e desvios, em que cada amante funciona como um espelho, e cada agosto, como uma estação da alma. Ana viaja todos os anos à ilha onde está o túmulo da mãe. O pretexto é o luto; o destino, o mesmo. Mas sob o gesto da fidelidade — o cumprimento de um dever — há algo que insiste: o desejo. Aquilo que a faz repetir a viagem é o mesmo que a empurra para fora dela.

O desejo, como diria Freud, é o que sobrevive à censura; e como lembraria Lacan, é o que insiste mesmo quando o sujeito tenta silenciá-lo. No primeiro encontro, Ana é tomada por um gesto que parece romper o véu do luto. Não se trata de um simples caso extraconjugal — é o nascimento de uma mulher que se vê, pela primeira vez, desejante.

A experiência do prazer aparece, paradoxalmente, como uma experiência de perda: ela se desorganiza, perde o eixo da esposa exemplar, mas ganha uma dimensão que até então estava adormecida — o poder de desejar. Seu corpo, antes dedicado à ordem doméstica, torna-se linguagem.

O que ela busca em cada amante não é apenas o prazer, mas a confirmação de que
ainda é desejável, de que ainda está no lugar do desejo do outro. É uma busca fálica — não por um homem, mas pelo poder simbólico de ser vista, reconhecida, eleita. O gozo masculino, ali, é apenas a via por onde ela tenta reinscrever seu próprio valor. Cada amante é um retorno, e cada retorno, uma tentativa de começar de novo. Mas o desejo, quando vivido como busca de reconhecimento, cobra seu preço: ele nunca é plenamente satisfeito.


Ana se cansa dos prazeres que, em outros tempos, a libertariam. O mesmo gesto que antes simbolizava potência começa a significar rotina. Ela percebe que também os corpos se repetem — mudam os nomes, as vozes, os cenários, mas a insatisfação é a mesma. Márquez a coloca nesse movimento de vai e vem, como quem mostra que
o desejo não tem direção fixa. Ele gira em torno da falta.

E o que Ana sente, em meio a esse giro, é o peso dos “vinte dólares” — cifra simbólica que aparece na narrativa não apenas como o pagamento de uma noite, mas como a medida daquilo que ela imagina valer. Entre o prazer e a culpa, o gozo e o vazio, Ana vai se dando conta de que
seu valor não pode ser contabilizado nem pela moeda, nem pelo olhar do outro.

No fim, tudo retorna à mãe.

Aquela mulher enterrada sob o sol de agosto é o espelho original no qual Ana aprendeu o que era ser mulher — e o que não podia ser. Durante anos, ela repetiu o luto como quem repetia o mandato materno: “seja boa, fiel, discreta, compreensiva”. Mas é na medida em que essa imagem começa a se desfazer — quando o túmulo já não é mais apenas um lugar de devoção, mas de despedida — que Ana se aproxima de si mesma.

Ao encontrar a história da mãe, ela se identifica; ao libertar-se dela, ela enfim se diferencia. Não se trata de romper com a mãe, mas de assumir um outro lugar de desejo — aquele que não precisa mais da aprovação materna nem da legitimação masculina. O que Ana descobre é o direito de desejar sem precisar estar infeliz. Desejar não como carência, mas como afirmação.  Não como fuga, mas como escolha.


A travessia de Ana não culmina em um amor grandioso nem em uma epifania libertária.  O que resta a ela é uma felicidade ordinária — aquela que não promete plenitude, mas oferece um ponto de referência, um lugar possível no mundo. E talvez seja exatamente aí, nesse “menos”, que reside o ganho simbólico da personagem.


Ana não deseja mais o impossível, nem busca preencher o vazio com o outro. Ela encontra o sossego de poder permanecer — com tudo o que falta, mas também com tudo o que é seu. É a maturidade de quem entende que o desejo não precisa ser resolvido, apenas sustentado. E é nesse ponto — no espaço entre o luto da mãe e o corpo que volta a pulsar — que Ana se torna inteira.


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