O Rio em guerra
A fabricação da verdade e o gozo da violência

“Onde todos mentem sobre tudo o que é importante, aquele que diz a verdade começa a agir.”
— Hannah Arendt, Verdade e Política
O que vemos no Rio de Janeiro ultrapassa os limites da segurança pública. As imagens de blindados, helicópteros e corpos nas ruas compõem uma cena ritual de poder — o espetáculo da guerra travestido de política. A cada nova operação, o Estado tenta reafirmar sua autoridade não pela justiça, mas pelo medo. A violência se repete como linguagem nacional, e o discurso midiático organiza o enredo: de um lado, o “crime”; do outro, a “lei”. Entre ambos, a população — transformada em cenário.
Hannah Arendt já advertia que, na política moderna, a mentira deixa de esconder segredos para fabricar realidades. A política torna-se o espaço da manipulação da opinião e da criação de imagens que substituem o real. A verdade factual — frágil, contingente, dependente de testemunhos — é descartada em nome do discurso útil. No Brasil, essa lógica se naturalizou.
As operações no Rio seguem o mesmo roteiro: a morte é tratada como vitória, a barbárie como eficácia. E a verdade, reduzida a estatística, serve apenas para reforçar a ilusão de que existe controle. O poder não precisa mais convencer — basta criar a aparência da ordem. Arendt lembrava que, quando o mundo político se lança à mentira organizada, “aquele que diz a verdade torna-se um agente político”, porque o simples ato de dizer o que é já representa resistência.
A polarização brasileira tornou-se o cenário ideal para essa destruição da verdade. Cada tragédia vira munição ideológica: se o governo é de direita, a culpa é da esquerda; se é de esquerda, culpa-se a direita. A verdade é reescrita conforme o turno do poder. No caso do Rio, a história é ainda mais irônica — há anos o estado é comandado por forças políticas identificadas com a direita, muitas delas defensoras da “mão dura” e da moral cristã como solução.
Esse discurso punitivista, legitimado por lideranças religiosas e reforçado pelos meios de comunicação, transformou a violência em valor moral. O Estado se exime da responsabilidade social e promete redenção pela bala. E, enquanto isso, os mortos se acumulam. A política se dissolve em moralismo e ressentimento, e o debate público se torna teologia de guerra.
A psicanálise ajuda a compreender o que o discurso político encobre: há prazer na violência. O gozo não está apenas em eliminar o outro, mas em sentir-se do lado certo. O “bandido bom é bandido morto” é o grito de uma sociedade que encontra prazer moral em sua própria barbárie. Arendt chamaria isso de banalidade do mal — o mal que não pensa, que apenas repete, que obedece à narrativa hegemônica como se fosse dever ético.
No Rio — e no Brasil — a violência é tão simbólica quanto literal. Não é apenas o corpo que se destrói, é o vínculo social, a compaixão, a ideia de humanidade. A mentira política, ao negar o real, mata duas vezes: primeiro o corpo, depois o sentido.
O desafio hoje é pensar. Pensar, para Arendt, é o oposto de obedecer. É recusar o conforto das respostas prontas e encarar o absurdo de frente. O Brasil precisa de pensamento tanto quanto precisa de justiça. Dizer a verdade — mesmo quando ela é incômoda — tornou-se o ato mais subversivo.
O Rio, com suas favelas sitiadas e suas elites de púlpito e farda, é o espelho do país. E se há esperança, ela está naqueles que ainda insistem em olhar para o horror sem transformar o horror em rotina. Porque, como dizia Arendt, a verdade não tem poder, mas tem dignidade — e é dessa dignidade que nasce a possibilidade de um mundo humano.



