Psicanálise das Relações: A Complexidade da Mentira e da Verdade em "Pedaço de Mim"

Ivo Fernandes • 17 de julho de 2024

Psicanálise das Relações: A Complexidade da Mentira e da Verdade em "Pedaço de Mim"

Introdução


Em uma conversa com colegas de trabalho, minha amiga psicóloga Socorro me falou da série "Pedaço de Mim", da Netflix em parceria com A Fábrica e lançada em 5 de julho de 2024, criada e escrita por Ângela Chaves, me aconselhando a assistir. A série mergulha profundamente nas relações humanas, explorando os efeitos devastadores da mentira e da verdade em contextos de adoecimento emocional e psicológico nos dramas familiares.

Neste artigo, pretendo, por meio de uma análise psicanalítica, refletir sobre como a mentira e a verdade, quando mal manejadas, afetam as relações e a saúde mental de cada um de nós.


A Mentira como Defesa Psíquica


Na trama, Liana (Juliana Paes) utiliza a mentira como uma defesa psíquica para lidar com suas dores e traumas. Após sofrer abuso e enfrentar a infidelidade do marido, Tomás (Vladimir Brichta), Liana esconde a verdade sobre a paternidade dos gêmeos. Freud aponta que a mentira pode ser um mecanismo de defesa do ego contra a angústia do real. Contudo, ao longo da série, vemos que essa defesa só fragmenta ainda mais sua identidade, contribuindo para o adoecimento psicológico.


Liana ocupa um lugar de vítima múltipla ao longo da trama: traída pelo marido, descuidada pela amiga, abusada e estuprada pelo amigo. A culpa e a vergonha que ela sente são notáveis, impedindo-a de lidar com esses eventos e falar sobre eles. Essa incapacidade de verbalizar suas dores é um reflexo do trauma profundo que ela carrega. Freud argumenta que aquilo que não é nomeado e enfrentado tende a retornar de maneira sintomática, exacerbando o sofrimento.


Só no último episódio, Liana consegue falar sobre sua vergonha, culpa e medo. Esse momento de revelação é crucial, pois a verbalização do trauma é um passo fundamental no processo de cura. Segundo a psicanálise, a fala tem um poder terapêutico, permitindo ao sujeito reorganizar suas experiências e integrá-las de maneira mais saudável.


A Verdade Desprovida de Intencionalidade Adequada


A verdade, quando não comunicada com empatia, pode ser igualmente destrutiva. Lacan destaca a importância de dizer a verdade no momento certo e de maneira que o sujeito possa integrá-la. Na série, a revelação abrupta da paternidade dos gêmeos para Tomás desestrutura ainda mais a família, mostrando que a verdade, sem mediação adequada, pode causar mais danos do que benefícios.


A revelação da verdade para Liana, sobre o marido e o amigo que a estuprou, desencadeia uma série de reações devastadoras. Ela se depara com a traição do marido e a violência do amigo, intensificando sua culpa e vergonha. A verdade, neste caso, ao invés de libertadora, torna-se uma fonte de sofrimento e desestruturação psíquica.


Tomás, ao descobrir a verdade sobre os gêmeos, enfrenta uma crise emocional que beira a insanidade. A verdade, sem o preparo adequado, enlouquece Tomás, evidenciando que a verdade, quando não mediada, pode ser destrutiva. Os filhos, Mateus e Marcos, também são profundamente afetados, pois a instabilidade dos pais reverbera em seu desenvolvimento emocional.


Dramas familiares como esse são realidades enfrentadas constantemente que veem na mentira o caminho mais adequado, ou o inverso, pensam ser a verdade a qualquer custo o melhor dos caminhos. Contudo, a mentira e a verdade se tornam semelhantes quando movidas por uma intencionalidade egoísta. Por que se mente? Ou por que se diz a verdade? Sem considerar o outro efetivamente, ou mesmo quando mascaramos nosso egoísmo num falso cuidado com o outro, estamos numa condição em que tanto faz se verdade ou mentira, ambas terão efeitos semelhantes.


A verdade pode ser revestida de piedade na religião ou usada como estratégia na política, mas invariavelmente causa danos ao ser quando não é mediada com empatia e cuidado e serve a propósitos escusos. Na série, vemos como a verdade, sem a devida preparação, envenena as relações e agrava o sofrimento dos personagens.


O Ciclo de Desconfiança e Alienação


O segredo mantido por Liana sobre a superfecundação heteroparental alimenta um ciclo de desconfiança e alienação. A série evidencia como segredos e omissões corroem a confiança, elemento essencial para a saúde das relações. A psicanálise sugere que a verdade, quando dita com empatia, pode reconstruir essa confiança e promover a cura.


A Função Terapêutica da Verdade


Liana passa por um doloroso processo de confrontar suas mentiras e aceitar suas verdades, necessário para sua integração psíquica. A série ilustra que a verdade tem um potencial terapêutico quando enfrentada e elaborada de forma adequada. A honestidade empática pode libertar e curar, promovendo a reconciliação e a restauração da saúde emocional.


Ao contrário dela, Tomás teve um encontro com a verdade mediada pela ilusão, e seu jogo egoísta transformou a verdade numa verdadeira prisão do seu psiquismo, nos mostrando o efeito trágico da verdade dogmática. A verdade só faz bem quando dita por lábios de pessoas que ponderam seus atos e os efeitos deles. Enquanto a verdade destrói Tomás, vai libertar Liana, e dá especialmente a Marcos, seu filho, uma chance de refazer sua identidade perdida no meio das mentiras. Mas por que a verdade tem efeitos tão distintos? Porque ela não é um bem em si mesma!

Subtemas Psicanalíticos


A Repressão e o Retorno do Reprimido


A repressão de memórias traumáticas é um tema central na série. Freud sugere que o reprimido tende a retornar de forma sintomática. Em "Pedaço de Mim", as mentiras de Liana são represálias de traumas que retornam como conflitos emocionais e relacionais. Outro momento que evidencia isso é a perda de memória de Marcos diante do sofrimento que a verdade vinha lhe causando.


A Confiança nas Relações


A confiança é minada pelas mentiras e verdades mal administradas. Para a formação de vínculos saudáveis, é essencial a honestidade empática. À medida que os personagens aprendem a ser honestos de maneira empática, a confiança pode ser reconstruída, permitindo a cura das relações adoecidas.


Conclusão


"Pedaço de Mim" oferece um material rico para refletir sobre os efeitos da mentira e da verdade nas relações humanas. A série nos ensina que a honestidade, acompanhada de empatia e intencionalidade adequada, é essencial para a integridade do self e a saúde das relações. A verdade, quando dita com compaixão, tem o poder de libertar e curar, promovendo a reconciliação e a integração psíquica.


Considerações Terapêuticas


A abordagem terapêutica psicanalítica sugere que o melhor lugar para lidar com nossas mentiras e verdades é no divã de um profissional sério. A terapia psicanalítica oferece um espaço seguro e mediado onde o indivíduo pode explorar sua história, confrontar traumas reprimidos, e reorganizar suas narrativas internas de maneira a promover a cura e a integração psíquica.


Na prática clínica, o terapeuta deve criar um ambiente de confiança, onde o paciente se sinta seguro para revelar suas verdades sem medo de julgamento. A mediação cuidadosa da verdade é fundamental para evitar retraumatizações e para permitir que o paciente possa integrar novas compreensões de si mesmo e de suas relações de maneira saudável.


Em síntese, "Pedaço de Mim" não apenas nos mostra os perigos da mentira e da verdade mal manejadas, mas também nos ensina sobre a importância da empatia, da intencionalidade adequada, e da mediação terapêutica no manejo dessas questões complexas.

 

Obras importantes na análise

 

Obras de Sigmund Freud

  1. Freud, S. (1976). O Ego e o Id. Rio de Janeiro: Imago.
  2. Freud, S. (1974). Além do Princípio do Prazer. Rio de Janeiro: Imago.
  3. Freud, S. (1980). Inibição, Sintoma e Angústia. Rio de Janeiro: Imago.
  4. Freud, S. (1972). Luto e Melancolia. Rio de Janeiro: Imago.

Obras de Jacques Lacan

  1. Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
  2. Lacan, J. (1985). O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
  3. Lacan, J. (1992). O Seminário, Livro 3: As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  4. Lacan, J. (2008). O Seminário, Livro 20: Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Zahar.

Obras de Referência e Complementares

  1. Chaves, Â. (2024). Pedaço de Mim [Série de televisão]. Netflix.
  2. Roudinesco, E. (2011). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 3



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