Raul Seixas: O Ator, o Alquimista e o Abismo
"Eu sou um ator."
Raul Seixas

Raul Seixas não foi apenas um músico, tampouco apenas um roqueiro. Ele foi uma espécie de xamã urbano, um alquimista das palavras, um provocador de consciências. Um sujeito que ousou viver — e arder — nos extremos da experiência humana. A série da Globoplay sobre sua vida, que acabo de assistir, me tocou profundamente — por sua beleza, mas também por sua tristeza. E próximo ao Dia Mundial do Rock, me parece justo e necessário falar de Raul. Não apenas o ícone, mas o homem — o ator, como ele mesmo dizia.
Raul dizia “eu sou um ator” não como quem performa papéis vazios, mas como quem reconhece que a vida é feita de cenas, de máscaras, de invenções. Essa frase — que também costumo usar quando perguntam quem sou — é uma chave para compreendê-lo. Raul jogava com os arquétipos, com os mitos, com o sagrado e o profano, com o conservador e o revolucionário. Ele criava personas como o Maluco Beleza, o Carimbador Maluco, o Filho do Diabo, o Cavaleiro Solitário. Não para se esconder, mas para se mostrar — em sua multiplicidade, em seu excesso, em sua liberdade.
O ator, aqui, é também o autor. Raul era um criador de mundos. Suas letras misturavam Jung, alquimia, Nietzsche, cristianismo, ficção científica, protesto político, crítica social e uma dose generosa de ironia. Ele era um filósofo disfarçado de roqueiro, ou talvez um roqueiro que filosofava. Falava de liberdade não como slogan, mas como dilema. Falava de Deus e do Diabo como metáforas internas. Falava do sistema, mas também das próprias amarras internas. E nisso, nos inquietava.
Mas há um ponto sensível e doloroso nessa travessia.
A radicalidade de Raul, que o tornava genial, também foi sua danação. A mesma sede de liberdade que o fez romper com gravadoras, desafiar a lógica de mercado e mergulhar em experimentos estéticos, foi a sede que ele tentou aplacar com álcool e drogas. E o álcool, ao contrário do que ele talvez acreditasse, não era um portal — era um cárcere. Não libertava. Corria-lhe por dentro como ácido, corroendo sua saúde, seus vínculos, sua lucidez.
A série mostra com delicadeza e dureza o quanto Raul foi se tornando refém de si mesmo. O Maluco Beleza, que tanto falava de voar, já não conseguia se levantar da cama. O ator, que interpretava tantos papéis, já não distinguia o palco da vida. E morreu cedo. Tarde demais para voltar atrás, cedo demais para nos dar ainda mais.
Mas ele deixou.
Deixou perguntas. Deixou hinos. Deixou espelhos. Suas músicas continuam falando a muitos — e a mim — de formas profundas e inesperadas. Há dias em que Raul me sacode com sua ironia. Em outros, me consola com sua ternura. E há momentos em que ele me responde como ninguém, quando me perguntam quem sou:
“Eu sou um ator.”
Porque também interpreto. Também crio. Também me perco e me refaço. Porque viver, afinal, é escrever e esquecer o roteiro ao mesmo tempo.
Mas aprendi, com Raul e apesar dele, que há um risco em radicalizar sem limites. A rebeldia, sem sustento simbólico, pode virar autoaniquilação. A liberdade, quando usada para fugir de si, vira exílio.
Raul foi farol e incêndio. Mestre e aviso.
E talvez, no Dia do Rock, ao celebrá-lo, possamos também escutá-lo com mais atenção — não só dançar com o Maluco Beleza, mas escutar o homem por trás da máscara. O que ainda pedia amor, afeto, limite, chão.
Porque por mais que sejamos atores, seguimos humanos.
Ivo Fernandes