Arthur Fleck e a Sombra do Coringa

Ivo Fernandes • 12 de outubro de 2024

O Confronto Entre o Comum e o Caos

Faço parte de um pequeno grupo que adorou Coringa 2, de Todd Phillips, pois acredito que o longa ofereceu uma continuação brilhante ao que o primeiro filme já indicava de maneira sutil. Em uma era dominada por heróis, tanto no cinema quanto na política e na mídia, o filme traz à tona o drama de Arthur Fleck — um comediante fracassado que se transforma no Coringa ao assassinar um apresentador na rede nacional. No segundo filme, Phillips avança ainda mais, subvertendo completamente as expectativas sobre heróis e vilões.


Delírio a Dois rompe com a ideia de exaltar o Coringa. Ao invés de reforçar o vilão carismático que muitos esperavam, o filme questiona nossa relação com a figura do anti-herói. A história se passa um pouco tempo após os acontecimentos do primeiro filme, acompanhando o julgamento de Fleck pelos assassinatos que cometeu, ao mesmo tempo que o romance entre Coringa e Harley Quinn é desenvolvido.


Harley Quinn, interpretada de forma brilhante por Lady Gaga, surge como uma representação dos próprios espectadores: amamos e queremos o Coringa, mas rejeitamos Arthur Fleck. Não nos interessa a psicanálise do filme, a menos que ela nos forneça heróis e vilões justificados. Quando ela nos joga de volta à realidade e desmonta nossas ilusões, o tédio e o horror de uma vida sem esses arquétipos se revelam — esse, pelo menos, foi um fato que observei em muitos que criticaram o filme.


Concordo que algumas escolhas, como os elementos musicais que interromperam momentos-chave, podem ter frustrado as expectativas do público. Afinal, pagamos pelo cinema esperando que ele atenda nossos anseios. Mas acredito que essa frustração era justamente a intenção de Phillips: como lidamos com o comum, com a banalidade da vida? E, mais importante, como reagimos quando somos confrontados com a nossa própria necessidade de espetáculo?


O filme nos coloca diante de uma escolha: o Coringa ou Arthur? Quem realmente nos importa? Parece que perdoamos a loucura desde que ela vire entretenimento, desde que venha do Coringa. Se for uma loucura de um homem comum, como Arthur, não toleramos. Detestamos o ordinário, e não apoiamos a ideia de que Coringas, esses vilões grandiosos, possam não existir. Queremos matar qualquer Arthur que ouse destruir nossa fantasia de heróis e vilões.


Arthur Fleck é um homem frágil, tanto físico quanto emocionalmente. Ele é uma vítima de seu entorno e de si mesmo, emasculado pela presença das mulheres que indiretamente controlam sua vida — seja sua mãe ou sua companheira. O filme, para mim, é sobre duas partes de um sujeito em conflito. Muitas cenas revelam isso, começando pelo curta que abre o longa, uma metáfora da luta entre o "eu" e a sombra, e a integração desses aspectos no sujeito.


Ao longo do filme, vemos Arthur lutando para integrar sua sombra, ou seja, para lidar com seus atos e, mais importante, com quem ele é. Afinal, ele matou seis pessoas, como menciona sucintamente em seu julgamento. Sua luta interna se reflete no conflito externo: de um lado, Harley Quinn e a multidão que o idolatram, desejando ver apenas o Coringa, o símbolo do caos. "Quero ver o seu eu verdadeiro", diz Harley, enquanto o pressionava para se libertar completamente. Do outro lado, estão os guardas da prisão, que os enxergam apenas como um perdedor oprimido. Mas quem realmente vê Arthur? Nem mesmo sua advogada, que o vê apenas como um caso de Transtorno Dissociativo de Personalidade, parece se importar com quem ele é de verdade. Para ela, ele é o produto dos abusos que sofreu, e nada mais.


Essa pressão externa culmina quando Arthur, irritado com a forma como é reduzido a um rótulo, permite que sua personalidade sombria, o Coringa, venha à tona. Aqui, o dilema central do filme se revela: Arthur é baseado em se conformar a expectativas que não dependem do que ele realmente sente. Ele se torna o Coringa não porque essa é sua verdadeira natureza, mas porque é o papel que a sociedade lhe impõe.


A cena do depoimento do Gigante Léo é um momento chave para mim. Quando ele diz: "Você sabe o quanto foi difícil para mim, perdê-lo, já que você era o único que não zombou de mim por ser um anão", vê-se um vislumbre do verdadeiro Arthur — um homem capaz de empatia, algo que o Coringa jamais poderia demonstrar. Arthur matou seis pessoas, sim, mas ele também é alguém que não ridicularizou os mais fracos. Ele é muito mais do que o símbolo de caos que a sociedade quer que ele seja.


Ao longo do filme, o debate interno de Arthur é evidente: de um lado, Harley Quinn e a máfia o incitam a abraçar seu lado caótico e assassino; do outro, os guardas e sua advogada querem que ele permaneça dócil e controlado. No fundo, a verdadeira luta é sobre como integrar essas partes de si mesmo — algo que todos nós, em algum nível, enfrentamos. Não queremos lidar com a ambiguidade, preferimos ou suprimir nossa sombra ou entregá-la completamente. Mas o filme nos desafia a ver além dessa dicotomia, a reconhecer que "somos isso, mas não somos apenas isso".


Na última cena, quando Arthur é esfaqueado e morre, o sorriso final de seu assassino sugere que o Coringa ainda está ali. Mas a verdadeira questão é: queremos realmente o retorno do Coringa? Ou estamos prontos para enfrentar uma verdade mais dolorosa — de que talvez o Coringa seja apenas uma construção nossa, enquanto o verdadeiro Arthur morre, invisível e ignorado?


Eu, ao contrário da maioria, estava atento a Arthur — o homem que pretendia, e falhou diversas vezes, em integrar sua sombra. Ele morreu fraco, abusado e com o coração partido. A pergunta que fica é: quem é Arthur? E, talvez mais importante, quem somos nós?


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